Poema de Sete Faces (Carlos Drummond de Andrade)Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homensque correm atrás de mulheres.A tarde talvez fosse azul,não houvesse tantos desejos.O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada.O homem atrás do bigodeé sério, simples e forte.Quase não conversa.Tem poucos, raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode.Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu não era Deusse sabias que eu era fraco.Mundo mundo, vasto mundo,se eu me chamasse Raimundoseria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração.Eu não devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.Porque (Carlos Drummond de Andrade)Amor meu, minhas penas, meu delírio,Aonde quer que vás, irá contigoMeu corpo, mais que um corpo, irá um'alma,Sabendo embora ser perdido intentoO de cingir-te forte de tal modoQue, desde então se misturando as partes,Resultaria o mais perfeito andróginoNunca citado em lendas e ciméliosAmor meu, punhal meu, fera miragemConsubstanciada em vulto feminino,Por que não me libertas do teu jugo,Por que não me convertes em rochedo,Por que não me eliminas do sistemaDos humanos prostrados, miseráveis,Por que preferes doer-me como chagaE fazer dessa chaga meu prazer?A Um Ausente (Carlos Drummond de Andrade)Tenho razão de sentir saudade,tenho razão de te acusar.Houve um pacto implícito que rompestee sem te despedires foste embora.Detonaste o pacto.Detonaste a vida geral, a comum aquiescênciade viver e explorar os rumos de obscuridadesem prazo sem consulta sem provocaçãoaté o limite das folhas caídas na hora de cair.Antecipaste a hora.Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.Que poderias ter feito de mais gravedo que o ato sem continuação, o ato em si,o ato que não ousamos nem sabemos ousarporque depois dele não há nada?Tenho razão para sentir saudade de ti,de nossa convivência em falas camaradas,simples apertar de mãos, nem isso, vozmodulando sílabas conhecidas e banaisque eram sempre certeza e segurança.Sim, tenho saudades.Sim, acuso-te porque fizesteo não previsto nas leis da amizade e da naturezanem nos deixaste sequer o direito de indagarporque o fizeste, porque te foste.Inconfesso Desejo (Carlos Drummond de Andrade)Queria ter coragemPara falar deste segredoQueria poder declarar ao mundoEste amorNão me falta vontadeNão me falta desejoVocê é minha vontadeMeu maior desejoQueria poder gritarEsta loucura saudávelQue é estar em teus braçosPerdido pelos teus beijosSentindo-me louco de desejoQueria recitar versosCantar aos quatros ventosAs palavras que brotamVocê é a inspiraçãoMinha motivaçãoQueria falar dos sonhosDizer os meus secretos desejosQue é largar tudoPara viver com vocêEste inconfesso desejoA Verdade (Carlos Drummond de Andrade)A porta da verdade estava aberta,Mas só deixava passarMeia pessoa de cada vez.Assim não era possível atingir toda a verdade,Porque a meia pessoa que entravaSó trazia o perfil de meia verdade,E a sua segunda metadeVoltava igualmente com meios perfisE os meios perfis não coincidiam verdade...Arrebentaram a porta.Derrubaram a porta,Chegaram ao lugar luminosoOnde a verdade esplendia seus fogos.Era dividida em metadesDiferentes uma da outra.Chegou-se a discutir quala metade mais bela.Nenhuma das duas era totalmente belaE carecia optar.Cada um optou conformeSeu capricho,sua ilusão, sua miopia.As Sem-razões do Amor (Carlos Drummond de Andrade)Eu te amo porque te amo.Não precisas ser amante,e nem sempre sabes sê-lo.Eu te amo porque te amo.Amor é estado de graçae com amor não se paga.Amor é dado de graça,é semeado no vento,na cachoeira, no eclipse.Amor foge a dicionáriose a regulamentos vários.Eu te amo porque não amobastante ou demais a mim.Porque amor não se troca,não se conjuga nem se ama.Porque amor é amor a nada,feliz e forte em si mesmo.Amor é primo da morte,e da morte vencedor,por mais que o matem (e matam)a cada instante de amor
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